Diene Ellen Tavares
Em torno da manipulação
do corpo e do cabelo do negro existe uma vasta história. Uma história ancestral
e uma memória.
Cresci
em uma família negra, com mulheres negras de cabelos crespos. A questão da
estética do cabelo sempre esteve nas rodas de conversas das mulheres da minha
vida: minha mãe Lira, minha avó materna Ana e minha tia, irmã da minha mãe,
Maria Raimunda. Mulheres potentes cujos ensinamentos carrego comigo. Quando assisti a série da Netflix A vida e
a História de Madame C. J. Walker, memórias
afetivas me encheram de lembranças. Lembranças boas, lembranças não tão boas, lembranças
das tranças que minha avó e mãe faziam em meus cabelos quando eu era criança. Cresci
em uma comunidade negra no estado do Amapá-AP onde a beleza negra sempre estava
em evidência, principalmente o cabelo:
O cabelo é um dos
elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico
ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para
cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância
como símbolo identitário. (GOMES, p 174. 2003)
O
cabelo diz quem nós somos. Carregamos na cabeça a raiz identitária do nosso
povo, da nossa ancestralidade. A série da Netflix A vida e a História de
Madame C. J. Walker pode ser
discutida a partir de diferentes perspectivas. Eu escolhi a da memória afetiva
que diz muito sobre a minha persistência em entender essas duas palavras
carregadas de signos e códigos, que depois de crescida, entendi que também é
carregada de preconceito: o tal do “cabelo bom”.
Eu,
minhas irmãs e primas, tínhamos o sonho de ter o cabelo com balanço, que
esvoaçasse ao vento, isso era um “cabelo bom” e não o cabelo “duro” como as
pessoas diziam que tínhamos. Lembro da dificuldade em encontrar produtos
apropriados para o nosso cabelo, vovó Ana comprava vaselina em pomada para
trançar os cabelos! Quando Madame C. J.
Walker fala que “cabelo é beleza, cabelo é emoção, cabelo é nossa
herança” isso traz uma discussão muito pertinente sobre a nossa negritude,
sobre a nossa identidade e sobre o que está por trás do “cabelo bom”.
Minha
mãe sempre falava que nós éramos bonitas, que o nosso cabelo era bonito. Mas,
sabíamos que o nosso cabelo tinha e tem uma textura completamente diferente das
nossas amigas da escola. No colégio, me deparava com minhas amigas com os
cabelos lisos ou anelados e lembro-me de que eu, minhas irmãs e primas amarrávamos
toalhas ou camisetas na cabeça e fingíamos ter cabelos esvoaçantes. E nós balançávamos
os “cabelos” de um lado para outro e, brincávamos de cabelo “grande”, longo e
bonito. Essa era a nossa percepção de “cabelo bom”.
Na
adolescência, eu sempre tive vontade de ter um cabelo longo. Foi quando aderi aos
processos com química, mas nunca quis um cabelo liso, eu queria que meu cabelo
crescesse, queria um cabelo diferente do que eu tinha. Passei por uma química
chamada permanente afro e depois de algumas aplicações tive uma queda de cabelo.
O cabelo caiu! Fiquei com um “buraco” no meio da cabeça! Chorei tanto, me sentia
tão envergonhada de ir nos lugares com “aquele cabelo”, o trauma foi tão grande
que passei muito tempo sem aplicar nem uma química e, passei boa parte da minha
adolescência usando o cabelo amarrado, precisava “domar”, “prender” a “juba”, pois era assim que se referiam ao
nosso cabelo e era assim que eu me via.
A
questão do cabelo sempre esteve muito presente na minha vida, na minha
trajetória acadêmica. Casei com um homem branco, tenho uma filha que nasceu com
os cabelos cacheados e lembro quando uma prima do meu esposo foi visitar, a
recém nascida soltou a frase clássica “nossa, que bom que ela nasceu com “cabelo
bom”. Na época, morávamos no Espírito Santo. Quando minha filha tinha um ano de
idade, meu esposo veio trabalhar em Brasília e, depois de um tempo, fui
trabalhar como professora temporária de sociologia no campus São Sebastião.
Quando
abrimos as turmas de Ensino Médio Integrado no campus, me deparei com várias
adolescentes com cabelos alisados. O cabelo alisado, que
é um padrão estético branco, visto socialmente como o mais belo, me incomodava
profundamente. Foi quando propus o projeto de Pibic Caminhos da beleza: A estética do cabelo afro como forma de identidade e
empoderamento feminino na Comunidade de São Sebastião-DF.
Cabelo é poder, é
resistência e representa uma quebra de paradigma do “cabelo bom”.
Trabalhar e afirmar a estética do cabelo afro é dialogar com corpos dos
sujeitos historicamente discriminados, estigmatizados. O cabelo representa uma
forma de liberdade na luta antirracista no nosso país.
Referências
GOMES,
Nilma Lino. Educação, identidade negra e
formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo.
Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1,
p. 167-182, 2003.