quinta-feira, 30 de abril de 2020

Cabelo é afeto, amor e aceitação

Diene Ellen Tavares





Em torno da manipulação do corpo e do cabelo do negro existe uma vasta história. Uma história ancestral e uma memória.

Cresci em uma família negra, com mulheres negras de cabelos crespos. A questão da estética do cabelo sempre esteve nas rodas de conversas das mulheres da minha vida: minha mãe Lira, minha avó materna Ana e minha tia, irmã da minha mãe, Maria Raimunda. Mulheres potentes cujos ensinamentos carrego comigo.  Quando assisti a série da Netflix A vida e a História de Madame C. J.  Walker, memórias afetivas me encheram de lembranças. Lembranças boas, lembranças não tão boas, lembranças das tranças que minha avó e mãe faziam em meus cabelos quando eu era criança. Cresci em uma comunidade negra no estado do Amapá-AP onde a beleza negra sempre estava em evidência, principalmente o cabelo:
O cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário. (GOMES, p 174. 2003)
O cabelo diz quem nós somos. Carregamos na cabeça a raiz identitária do nosso povo, da nossa ancestralidade. A série da Netflix A vida e a História de Madame C. J.  Walker pode ser discutida a partir de diferentes perspectivas. Eu escolhi a da memória afetiva que diz muito sobre a minha persistência em entender essas duas palavras carregadas de signos e códigos, que depois de crescida, entendi que também é carregada de preconceito: o tal do “cabelo bom”.
Eu, minhas irmãs e primas, tínhamos o sonho de ter o cabelo com balanço, que esvoaçasse ao vento, isso era um “cabelo bom” e não o cabelo “duro” como as pessoas diziam que tínhamos. Lembro da dificuldade em encontrar produtos apropriados para o nosso cabelo, vovó Ana comprava vaselina em pomada para trançar os cabelos! Quando Madame C. J.  Walker fala que “cabelo é beleza, cabelo é emoção, cabelo é nossa herança” isso traz uma discussão muito pertinente sobre a nossa negritude, sobre a nossa identidade e sobre o que está por trás do “cabelo bom”.
Minha mãe sempre falava que nós éramos bonitas, que o nosso cabelo era bonito. Mas, sabíamos que o nosso cabelo tinha e tem uma textura completamente diferente das nossas amigas da escola. No colégio, me deparava com minhas amigas com os cabelos lisos ou anelados e lembro-me de que eu, minhas irmãs e primas amarrávamos toalhas ou camisetas na cabeça e fingíamos ter cabelos esvoaçantes. E nós balançávamos os “cabelos” de um lado para outro e, brincávamos de cabelo “grande”, longo e bonito. Essa era a nossa percepção de “cabelo bom”.
Na adolescência, eu sempre tive vontade de ter um cabelo longo. Foi quando aderi aos processos com química, mas nunca quis um cabelo liso, eu queria que meu cabelo crescesse, queria um cabelo diferente do que eu tinha. Passei por uma química chamada permanente afro e depois de algumas aplicações tive uma queda de cabelo. O cabelo caiu! Fiquei com um “buraco” no meio da cabeça! Chorei tanto, me sentia tão envergonhada de ir nos lugares com “aquele cabelo”, o trauma foi tão grande que passei muito tempo sem aplicar nem uma química e, passei boa parte da minha adolescência usando o cabelo amarrado, precisava “domar”, “prender”  a “juba”, pois era assim que se referiam ao nosso cabelo e era assim que eu me via.
A questão do cabelo sempre esteve muito presente na minha vida, na minha trajetória acadêmica. Casei com um homem branco, tenho uma filha que nasceu com os cabelos cacheados e lembro quando uma prima do meu esposo foi visitar, a recém nascida soltou a frase clássica “nossa, que bom que ela nasceu com “cabelo bom”. Na época, morávamos no Espírito Santo. Quando minha filha tinha um ano de idade, meu esposo veio trabalhar em Brasília e, depois de um tempo, fui trabalhar como professora temporária de sociologia no campus São Sebastião.
Quando abrimos as turmas de Ensino Médio Integrado no campus, me deparei com várias adolescentes com cabelos alisados. O cabelo alisado, que é um padrão estético branco, visto socialmente como o mais belo, me incomodava profundamente. Foi quando propus o projeto de Pibic Caminhos da beleza: A estética do cabelo afro como forma de identidade e empoderamento feminino na Comunidade de São Sebastião-DF.
Cabelo é poder, é resistência e representa uma quebra de paradigma do “cabelo bom”. Trabalhar e afirmar a estética do cabelo afro é dialogar com corpos dos sujeitos historicamente discriminados, estigmatizados. O cabelo representa uma forma de liberdade na luta antirracista no nosso país.
Referências
GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Educação e  Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 167-182, 2003.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Mulheres Negras: moldando a teoria feminista


Cecília Braz Arcanjo


(A partir da leitura do capítulo 1 do livro Teoria feminista, de bell hooks)


bell hooks inicia seu livro Teoria feminista: da margem ao centro convocando-nos a refletir sobre o movimento feminista atual. Apesar de ser um livro publicado pela primeira vez em 1984, é notável a atualidade da discussão que a autora nos traz.
A partir da análise do feminismo no contexto americano, o primeiro capítulo do livro enfatiza a exclusão das mulheres negras do movimento feminista, as quais são frequentemente colocadas à margem ou tendo suas lutas invisibilizadas pelas intelectuais (de certa forma detentoras dos conceitos feministas) à época. Afinal, as experiências sofridas pelas “esposas brancas instruídas” não podem ser traduzidas como a única forma de opressão pelas quais as mulheres passam. Essa “perspectiva unidimensional”, no entanto, tornou-se referência para a compreensão do feminismo, sem considerar que tais dramas, ainda que legítimos, provavelmente não são as principais referências no tocante à opressão que o sexismo impõe às mulheres na sociedade americana. Ao contrário, pertencem a um seleto, e muitas vezes privilegiado, grupo de mulheres.
bell hooks demonstra a capacidade do patriarcado capitalista dominante em cooptar as pautas feministas vigentes, desde que “mulheres que não se opunham ao patriarcado, ao capitalismo, à distinção de classes sociais ou ao racismo passaram a se intitular feministas”. Assim, se possuir como referência a perspectiva individual liberal, o movimento feminista não possuirá uma conotação coletiva, servindo como mais uma ferramenta para alimentar os interesses das classes dominantes.  
A autora traz relatos pessoais de sua experiência na faculdade, revelando seu sentimento de não pertencimento aos grupos feministas, pois “embora se mostrassem interessadas em nossos relatos pessoais sobre a experiência negra, agiam como se coubesse a elas decidir sobre a autenticidade dessas experiências”, contribuindo para silenciar as mulheres negras em espaços essencialmente tidos como feministas.
bell hooks nos faz refletir sobre a posição da mulher negra na sociedade, que está na base da pirâmide social, e como o feminismo tem falhado em reconhecer a importância de incluir no debate feminista as inter-relações entre as opressões de classe e raça. Para exemplificar as opressões, a autora aponta com propriedade a não existência de um “outro” que sirva de objeto de exploração às mulheres negras, ao passo que aos homens negros e às mulheres brancas existe: a possibilidade de agirem como opressores das mulheres negras, fazendo com que a luta feminista, assim como a racista, seja minada. Segundo a autora, “enquanto a igualdade almejada por esses dois grupos ou outro qualquer conceber a libertação como a conquista da igualdade social com homens brancos da classe dominante, eles continuarão exercendo opressão e exploração sobre terceiros”.
Finalizando o capítulo, a autora deixa claro o caminho ao qual o livro se dedicará, apontando como essencial que as mulheres negras reconheçam a vantagem de sua marginalidade, para que possam, a partir dessa perspectiva, manifestar críticas ao pensamento feminista dominante, no intuito de juntar esforços para a construção de uma teoria feminista libertadora e coletiva.
             

Cine debate 2