Mônica Rocha dos Santos
“Se você não vê a minha negritude, você não me vê”. Starr Carter
O
filme, O ódio que você semeia, dirigido por George Tillman Jr., é baseado na obra literária de mesmo
nome, da autora Angie Thomas. As reflexões trazidas na obra são contemporâneas
e extremamente necessárias, fazendo parte do cotidiano estadunidense e também
brasileiro, é uma história que precisa ser contada de forma humanizada, como
foi abordada na obra.
Starr
Carter, protagonista da história, é uma adolescente negra que vive com sua
família em uma comunidade negra e frequenta uma escola com o público quase que
exclusivamente branco, vive em dois universos contraditórios e vivencia muitas
crises de identidade e pertencimento por isso. Após presenciar o assassinato de
seu amigo Khalil, jovem negro, por um policial branco, Starr vê todas essas
contradições se concretizarem e exigirem uma ação de sua parte.
Muitas
reflexões são levantadas na produção, mas a questão central é a violência
policial, que colabora com um projeto genocida da população negra. Khalil é
assassinado, após o carro em que ele e Starr estarem ser parado pela polícia,
que atira de forma arbitrária. Existe toda uma solidariedade da comunidade
policial e da mídia para tentar justificar a ação baseada no passado do jovem e
não nas circunstâncias que culminaram com seu assassinato, em uma óbvia
tentativa de criminalizar a vítima.
Fatos
como esses são corriqueiros no Brasil, em 2015 houve uma chacina no Cabula,
bairro de Salvador, com a morte pela Polícia Militar de 12 jovens negros (Evson Pereira, Ricardo Vilas Boas, Jeferson Pereira, João
Luis, Adriano de Souza, Vitor Amorim, Agenor Vitalino, Bruno Pires, Tiago
Gomes, Natanael de Jesus, Rodrigo Martins, Caique Bastos), até hoje o
caso continua sem solução e, na época, a integridade da vida dos jovens foi
assunto da mídia. Outro caso também de 2015, que choca pela brutalidade, foi a
chacina de Costa Bairros no Rio de Janeiro, onde a ação policial matou 5 jovens
negros (Roberto, Carlos Eduardo,
Cleiton, Wilton e Wesley) com 111 tiros, outro caso que ainda não teve
um desfecho para as famílias das vítimas, que precisaram provar a humanidade de
seus mortos e criar empatia, para se livrarem das tentativas de justificar a
ação policial.
As
famílias negras que perdem seus entes para a ação policial precisam com
frequência provar a condição de vítima dos corpos negros e contar suas
histórias, para que haja empatia do público geral. As vítimas tornam-se réus
diante do julgamento público.
A
obra fictícia narra a união da comunidade negra para que o Khalil não se torne o
réu do crime que o vitimou, assim também acontece no Brasil, vozes negras se
erguem para denunciar situações como essas, que acabam a cada dia se tornando
mais corriqueiras e naturalizando essa violência.
Um
dos panos de fundo da obra é a relação de pertencimento à comunidade negra que
cerca Starr. Ao mesmo tempo que a jovem vive em uma comunidade cercada pela
violência, é nesse espaço que ela se reconhece como jovem negra, cria seus
gostos culturais e estabelece vínculos. Ela não está isolada nesse universo e
com frequência lida com crises de identidade/pertencimento pelo contato com os
colegas e namorado branco, bem como pela vivência escolar.
É
na escola que ela percebe-se diferente, que precisa a todo tempo não parecer
suburbana demais, negra demais...é nesse espaço que as violências acontecem de
forma sutil e fazem com que Starr perceba desde sempre que precisa viver
controlando seu linguajar, roupa, estilo, gostos, para ser aceita e não
questionada.
Durante
muito tempo a relação de Starr com seus amigos foi essa, negando sua identidade
negra periférica para ser aceita no grupo. Quando a morte de seu amigo a faz
agir diferente, seu posicionamento é questionado, sua coerência e sabedoria são
colocadas à prova. Mostrando como em muitas situações cotidianas a presença
negra é tolerada enquanto não questiona o status quo, enquanto são amigáveis.
A
protagonista passa boa parte da história tentando se decidir entre manter o anonimato
para a mídia, como única testemunha do assassinato de Khalil, ou se lidera os
movimentos da comunidade negra de protesto pela violência policial. Ela não
queria ser a pessoa que levanta a sua voz para falar em nome de uma causa, de
uma comunidade, queria lidar com a dor quietinha, esperando tudo passar. Mas,
ela precisa falar, precisa dizer o que viu e precisa representar o grupo.
A
dúvida de Starr é a dúvida de muitos militantes e anônimos negros. A gente não
quer ter que levantar as nossas vozes, mas somos obrigados a gritar, diante de
uma sociedade, de um sistema que tenta de diversas formas, todos os dias, nos
exterminar. Muitas vezes somos os únicos em determinados espaços, grupos,
situações e essa experiência exige de nós ação. Às vezes, nós só queremos ficar
quietinhos, mas nem sempre temos essa opção.